8 de jul. de 2011

Curso de ECA

Módulo 1: Gênese do Direito da Infância e Juventude

Princípio da igualdade e desisonomia seletiva - a razão da proteção integral de crianças e adolescentes.

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Meus cumprimentos a todos.

Inicialmente, gostaria de lhes dar as boas vindas nesse curso. Fiquem à vontade!

Espero, sinceramente, que as próximas linhas sejam capazes de agregar conhecimento, estimular a reflexão, proporcionar a troca de ideias e despertar o interesse cada vez mais intenso no estudo dos direitos infanto-juvenis

Qualquer dúvida, entrem em contato.

Boa leitura!

1.1 - Princípio da igualdade e desisonomia seletiva: a razão da proteção integral de crianças e adolescentes

Nos termos do artigo 5º, "caput", da Constituição Federal de 1988, todos são iguais perante a lei.

Significa dizer que todos devem ser tratados igualmente, viabilizando-se o acesso aos mesmos direitos e garantias fundamentais.

Mas a vigência do princípio da igualdade no nosso ordenamento não impede que o legislador trate diferentemente pessoas diferentes, com base naquilo que chamamos de desisonomia seletiva.

Ora, se todos fossem merecedores de idêntico tratamento jurídico, não precisariamos de tantas leis em nosso país para a tutela de grupos humanos específicos (como é o caso do Código de Defesa do Consumidor, do Estatuto do Idoso, da Lei Maria da Penha...).

Diante dessa colocação, fica evidente que, independentemente da certeza de que todos têm o direito de serem tratados igualmente (leia-se: sem predileções ou perseguições), é totalmente legítima a diferenciação de tratamento jurídico quando essa diferenciação (chamada de discrímen) se dá com base em um critério justo e proporcional, que objetive, em última instância, suprimir desigualdades impregnadas em um determinado contexto (econômico, social, histórico, cultural etc). 

Falar em desisonomia seletiva é o mesmo que falar em seleção de critério legítimo de desigualação, que diferencia juridicamente pessoas faticamente diferentes, proporcionando o alcance da verdadeira igualdade material.

Esse raciocínio desenvolve a faceta aristotélica do princípio da igualdade ou, como se prefere dizer, a esfera material desse princípio. Não basta tratar todos de maneira igual, pois, fazendo-se isso, o resultado será aumentar as diferenças das pessoas diferentes. O certo, para a verdadeira concretização do princípio da igualdade, é selecionar situações específicas da sociedade para que, a partir delas, se dê tratamento diferente às pessoas essencialmente diferentes, de modo a proporcionar uma verdadeira igualdade. E é isso que significa a expressão desisonomia seletiva: selecionar para desigualar proporcionalmente, até o atingimento da igualdade substancial.

 Em termos mais simples: tratar igualmente pessoas diferentes acarreta o aumento do quadro de desigualdade. É preciso, por meio de um critério legítimo, tratar diferentemente os desiguais, na medida dessa desigualdade. Diferenciando os desiguais é que se igualiza.

 Posto isso, é de se ver que, no caso de crianças e adolescentes, essas não recebem tratamento idêntico ao do adulto. Na verdade, o legislador lhes deu um tratamento diferenciado, porque os viu como seres humanosdiferentes, física e psicologicamente mais frágeis do que os adultos.

Reconhecendo a existência dessa característica das crianças e dos adolescentes que os diferencia negativamente (como, por exemplo, o fato destes indivíduos não conseguirem sozinhos exigir e perseguir os seus direitos), o legislador optou por lhes dar um tratamento desigual, na medida de sua desigualdade, objetivando o alcance da igualdade substancial.

Nesse sentido, o art. 227 da Constituição Federal confere às crianças e aos adolescentes um tratamento jurídico diferenciado, baseado na Doutrina da Proteção Integral, que se rege, entre outros, pelos princípios do RESPEITO À PECULIAR CONDIÇÃO DE DESENVOLVIMENTO, da PRIORIDADE ABSOLUTA e do MELHOR INTERESSE DE CRIANÇAS E ADOLESCENTES.

O princípio do respeito à peculiar condição de desenvolvimento confere à família, à sociedade e ao Estado o dever de proteger crianças e adolescentes, de modo a garantir-lhes o atingimento sadio à vida adulta.

Para concretizar esse objetivo, o ordenamento jurídico destina a crianças e adolescentes um sistema tripartite de garantias, que busca impedir, a todo custo, a violação dos direitos desses indivíduos: o sistema primário designa políticas públicas voltadas especialmente a crianças e adolescentes; o sistema secundário, por seu turno, desenvolve medidas de proteção para infantes e jovens que se encontram em situação de violação de direitos; e o sistema terciário, por sua vez, estabelece regras excepcionais de aplicação de medidas socioeducativas nos casos de adolescentes que violam seus direitos em razão da prática de atos infracionais.

O princípio da prioridade absoluta coloca os interesses das crianças e adolescentes em primeiro plano, na medida em que se identifica que, embora a infância e a juventude representem apenas uma pequena etapa da vida do ser humano, é nesse período vital que são exigidos maiores cuidados relacionados à saúde, à alimentação, à educação e à socialização do ser humano, que, ainda em situação frágil e vulnerável, precisa do máximo de atenção e cuidado para bem se fortalecer, crescer e construir a sua personalidade, seus ideais e os seus valores de vida.

Por fim, o princípio do melhor interesse assegura que à criança e ao adolescente (inclusive ao adolescente acusado da prática de infração penal) seja dado tratamento jurídico adequado, efetivamente capaz de concretizar o ideal legal de desisonomia seletiva (de modo a se alcancar a igualdade material devida). Ora, se pelo princípio da igualdade decidiu-se por diferenciar beneficamente o jovem porque ele, se comparado ao adulto, é mais frágil e vulnerável, seria um contrassenso se, em determinado caso concreto, a legislação especial restasse por conferir a uma criança ou a um adolescente tratamento jurídico mais prejudicial do que aquele tratamento que a legislação comum confere a um adulto que se encontra em idêntica situação. Se essa situação fosse admissível, melhor seria não ter lei especial alguma e se aplicar ao jovem exatamente as mesmas leis do adulto. Como, contudo, se optou pelo tratamento diferenciado mais benéfico da criança e do adolescente, o princípio do melhor interesse assegura que à criança e ao adolescente não se pode conferir, em nenhuma hipótese, tratamento mais prejudicial do que o do adulto diante de uma situação semelhante.

 Dessa forma,  a Constituição, com base em um critério de desisonomia seletiva, conferiu a crianças e adolescentes um tratamento diferenciado, mas com a finalidade de os proteger, assegurando-lhes direitos especiais para atingir substancialmente o princípio da isonomia.

Esse tratamento diferenciado mais benéfico ganha corpo não só no texto constitucional (artigos 227 e 228), senão também e no Estatuto da Criança e do Adolescente, que será objeto de estudo nas próximas aulas.

Feitas essas colocações, pergunto: a desisonomia seletiva de crianças e adolescentes é algo novo no nosso ordenamento?  Como eram tutelados os direitos infanto-juvenis antes da Constituição de 1988?

Da indiferença penal à proteção integral - apontamentos históricos relevantes

Estudado o princípio da igualdade e a sua aplicação no direito infanto-juvenil, cumpre analisar a evolução histórica das legislações voltadas para crianças e adolescentes.

1.2 - Da indiferença penal à proteção integral - apontamentos históricos relevantes 

A humanidade demorou para perceber que crianças e adolescentes mereciam especial proteção em razão da sua situação de maior fragilidade/vulnerabilidade.

 Pode-se dividir a evolução histórica dos direitos de crianças e adolescentes em três etapas: penal indiferenciada, tutelar e garantista. 

A etapa penal indiferenciada, que perdurou no Brasil até a primeira metade do século XX, não trazia qualquer diferenciação de tratamento jurídico para crianças, adolescentes ou adultos. Todos estes indivíduos submetiam-se às mesmas leis, podendo ser igualmente processados – e condenados.

Nas tribos indígenas, os jovens eram punidos severamente para aprenderem a se comportar como adultos, havendo, inclusive, pena de morte. Vigia a regra do talião (olho por olho, dente por dente), e as penas iam além da pessoa do condenado.

Nas ordenações afonsinas e manuelinas, a pena de morte era aplicada a crianças e adolescentes com naturalidade.

Com as ordenações filipinas, pela primeira vez surgiu uma possibilidade de redução do quantum da pena em razão de o acusado ainda não ser um homem formado. Independentemente disso, a aplicação dessa redução dependia de decisão do julgador, que não raramente agia de maneira arbitrária e impunha a jovens, sem fundamentar, a pena capital.

O Código Penal do Império, de 1830, inaugurou a figura do discernimento, tratando crianças e adolescentes da seguinte maneira: se menores de 14 anos e considerados sem capacidade de discernimento, não tinham responsabilidade alguma por seus atos; se menores de catorze e considerados com discernimento, eram recolhidos a uma casa de correção por tempo indeterminado.

O Código Penal da República, de 1890, extinguiu, finalmente, a pena de morte e trouxe a inimputabilidade absoluta (dos menores de nove anos) e relativa (daqueles que tinham menos de 14 anos - ou seja, entre 9 e 14 anos só haveria responsabilidade se houvesse discernimento).

A permanência no ordenamento do critério do discernimento dava ampla margem de liberdade ao julgador, que não possuía critérios objetivos para decidir pela imputabilidade ou não do jovem. Em razão disso, em 1921, a Lei 4242 alterou o CP1980, eliminando o critério do discernimento e fixando como 14 anos a idade de imputabilidade penal.

Independentemente do reconhecimento dessa situação de inimputabilidade, jovens e adultos continuavam sendo destinados aos mesmos estabelecimentos prisionais, recebendo tratamento indigno.

Inicia-se, então, um novo período, denominado de etapa tutelar, no qual no juiz passa a se preocupar com crianças e adolescentes de uma maneira diferenciada, chegando a se intrometer inclusive na seara familiar com o intuito de tutelar esses indivíduos.

Essa etapa se inaugurou com a criação do primeiro Tribunal de Menores nos EUA, em 1899.

No Brasil, foram criados dois Códigos de Menores: o de 1927 (conhecido como Código Mello Matos) e o de 1979. Ambos mantiveram a inimputabilidade dos menores de 14 anos.

Inaugurou-se, nesse momento histórico, a chamada doutrina da situação irregular, que autorizava a internação de crianças e adolescentes por prazo indeterminado pela simples constatação de que estes se encontravam em uma situação irregular, a qual poderia se configurar não só com a prática de infrações, mas também em casos como os de abandono familiar, de maus-tratos e inclusive de pobreza.

Diferentemente da etapa anterior, fato é que a etapa tutelar trouxe tratamento diferenciado a crianças e adolescentes. Contudo, esse tratamento diferenciado veio em prejuízo a esses indivíduos: na prática, com os Códigos de Menores, atribuiu-se tratamento jurídico mais prejudicial a crianças e a adolescentes, que se submetiam a medidas indeterminadas, as quais eram impostas independentemente da observância de maiores formalidades legais.

Punia-se, assim, por prazo INDETERMINADO uma criança ou um adolescente pelo simples fato deste indivíduo ser abandonado, pobre ou violentado (ou seja, em situação irregular). Dessa forma, na etapa tutelar o juiz, objetivando a manutenção da ordem social e redução da criminalidade juvenil (e sem se preocupar com a efetiva proteção integral de crianças e adolescentes), via-se autorizado por lei a impor medidas desproporcionais e desarrazoadas a esses jovens, que, no entender da legislação da época, eram seres inferiores, “menores”, dignos de piedade e necessitados de tutela.

Essas medidas indeterminadas, porque disfarçadas de “tratamento” ou de “cura”, transmitiam a mensagem de que importariam um “bem” aos seus destinatários – o que corresponde a uma nítida falácia. Afinal, como pode a privação indeterminada da liberdade por motivos escusos (de pobreza, abandono ou maus-tratos) configurar uma vantagem para alguém?

Indignados com essa situação, e embasados nos conteúdos de diversos tratados e convenções internacionais de direitos humanos ratificados pelo Brasil, muitos brasileiros indignados participaram de um abaixo-assinado para a modificação do tratamento dos infantes e jovens que se submetiam à doutrina da situação irregular. Com mais de 5 milhões de assinaturas, esse abaixo-assinado foi o responsável pela inserção do atual art. 227 no texto constitucional, que inicia a terceira etapa desse histórico.

A chamada de etapa garantista, ao tornar crianças e adolescentes, que antes eram vistos como mera propriedade dos seus pais, SUJEITOS DE DIREITOS merecedores de um tratamento especial, pautou-se no critério de desisonomia seletiva delineado na aula anterior.

Deu-se início à doutrina da proteção integral, que conferiu a crianças e adolescentes os princípios da peculiar condição de pessoa em desenvolvimento, da prioridade absoluta e do melhor interesse.

Nos termos do artigo 227 da Constituição Federal,

“É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança e ao adolescente, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão.”

A nova orientação doutrinária adotou a nomenclatura “criança” e “adolescente” ao invés de “menor”, já que a palavra “menor” remete à ideia de inferioridade, de debilidade, utilizada pela doutrina anterior e que foi abandonada. Note-se, nessa linha, a mudança de nomenclatura de Código de Menor para Estatuto da Criança e do Adolescente. Hoje, quem trabalha na área não deve chamar quem tem menos de 18 anos em hipótese alguma de “menor”, por se tratar de expressão pejorativa.

 Por fim, nota-se que a Constituição ainda determinou, em seu art. 228, que são inimputáveis os menores de dezoito anos, e conferiu a uma lei especial o dever de estipular a responsabilidade daqueles que possuem idade inferior a essa. A lei especial que cumpriu esse papel foi a de nº 8069/90, o Estatuto da Criança e do Adolescente.

Módulo 2: Ato infracional e ação socioeducativa

Nesta aula, estudaremos o significado de ato infracional e medida socioeducativa.

A aula é densa e concentra diversos temas de extrema relevância.

2.1: Ato infracional e medida socioeducativa

Ato infracional

O ECA considera ato infracional a conduta descrita como crime ou contravenção penal praticado por pessoa criança ou adolescente, entre 0 e 17 anos. Assim, o menor de 18 anos não pratica crime, mas ato infracional. 

Adota-se um mecanismo de TIPICIDADE REMETIDA, que incorpora o princípio da legalidade e, por conseqüência, os tipos penais dos adultos, ao sistema de responsabilidade especial do ECA. 

A substituição da doutrina da situação irregular, vigente na época dos Códigos de Menores, pela doutrina da proteção integral levou a uma limitação do poder Estatal: a intervenção punitiva, que antes poderia se dar sempre que constatada uma situação irregular (uma criança perambulando pela rua, por ex), agora só pode ser admitida diante da prática de uma conduta tipificada como infração penal para os adultos. Por isso, se fala em tipicidade remetida: remete-se, para fins de tipificação, às leis dos adultos; mas a responsabilidade é a especial, prevista no ECA. 

Importante é destacar que, em havendo necessidade de observância do princípio da legalidade, o ato praticado pelo adolescente, para ser considerado ato infracional, não pode apenas ser típico. Deve ser típico, antijurídico e culpável. 

Com relação à tipicidade, esta ocorre quando se verifica que a letra fria da lei prevê determinada conduta como criminosa. Há tipicidade, assim, quando o ato infracional possui previsão legal específica. Exemplo: o art. 155 do Código Penal determina ser crime de furto a conduta de quem “subtrai coisa alheia móvel”. 

Mas, para que um adolescente possa ser réu de uma ação socioeducativa, não basta que pratique fato típico; o fato deve ser também antijurídico, isto é, contrário ao Direito, e culpável, ou seja, reprovável pela sociedade. 

Nesse sentido, se o adolescente mata alguém em legítima defesa, seu ato não é antijurídico, porque o ordenamento jurídico aceita essa conduta (o ato não é contrário ao Direito). Não sendo antijurídico, não pode ser considerado praticado o ato infracional. 

Da mesma forma, se um adolescente mata alguém sem ter condições de autodeterminação em razão de possuir distúrbios mentais, o ato por ele praticado não é culpável, porque não revestido de reprovabilidade social. Logo, em razão dessa constatação, o adolescente não pode ser punido. 

Assim, punido poderá ser o adolescente que praticar ato infracional revestido de tipicidade, antijuridicidade e culpabilidade. 

Fala-se em PUNIÇÃO porque a inimputabilidade dos adolescentes prevista no art. 228 da CF (“são inimputáveis os menores de 18 anos, sujeitos às normas da legislação especial”) não se confunde com impunidade. Inimputabilidade significa apenas a impossibilidade de imputação das penas dos adultos. Mas o adolescente, embora inimputável, é dotado de uma responsabilidade especial, ou seja, responde pela prática dos atos infracionais, podendo, se comprovadas autoria e materialidade delitiva, ser obrigado a cumprir não penas, mas medidas socioeducativas. 

Destaca-se que criança não possui nem imputabilidade, nem responsabilidade especial. Logo, se uma criança pratica crime, não pode ser responsabilizada nem com pena, nem com medida socioeducativa. A ela pode ser aplicada o que chamamos de medida de proteção, que são medidas administrativas, não punitivas, voltadas para a proteção de direitos tanto de crianças quanto de adolescentes. 

Nota-se, assim, que a CF criou uma DUALIDADE DE SISTEMAS DE RESPONSABILIDADE: para adultos, penas (para os capazes) e medidas de segurança (para os deficientes mentais); para adolescentes, medidas socioeducativas (impostas só a adolescentes e com natureza punitiva) e medidas de proteção (impostas tanto a crianças quanto a adolescentes e sem o condão de punição). 

Dito isso, repete-se que ato infracional corresponde ao crime ou à contravenção penal quando praticado por pessoa com menos de 18 anos. 

Deve-se notar que o ECA adotou aquilo que se chama de TEORIA DA ATIVIDADE: a idade do adolescente deve ser considerada no momento da conduta criminosa, e não do resultado. Assim, se uma pessoa com dezessete anos atira em outra e essa vítima só vem a falecer quando o autor do ilícito já contava com dezoito anos, questiona-se: é caso de acionamento da Justiça da Infância e Juventude, porque na época do tiro o autor era adolescente, ou a hipótese é da competência da Justiça comum, porque o agente completou dezoito anos e deve responder pela prática de crime na qualidade de adulto? 
Ora, como o ECA adotou a teoria da atividade, o que importa é a idade do agente na época em que inicia a conduta criminosa. Assim, se desferiu o tiro com 17, responde pelas regras do ECA (por medida socioeducativa), mesmo que quando a vítima morra ele já tenha 18 anos de vida. Lembre-se que, uma vez iniciada a conduta criminosa antes dos 18 anos, o agente pode ser processado, condenado e cumprir medida socioeducativa até os 21, idade em que, se estiver internado, deverá ser solto em razão do que se chama de PRESCRIÇÃO ETÁRIA. 

Medidas Socioeducativas

Para a aplicação de medidas socioeducativas, deve se operar o preenchimento de dois requisitos: um objetivo (prática de ato infracional, não bastando que haja situação irregular- deve ter sido praticada conduta tipificada como infração penal) e outro subjetivo (prática por pessoa entre 12 e 18 anos, isto é, por adolescente). 

O rol de MSE é exaustivo: existem apenas seis, sendo quatro medidas não privativas de liberdade - Advertência, de aplicação imediata, Reparação do dano, também de aplicação imediata, PSC, que tem duração máxima de seis meses e que deve ser aplicada em consonância com as aptidões do adolescente e com jornada máxima de 08 horas semanais, sem prejuízo da presença na escola e no trabalho, e LA, com duração mínima de seis meses e máxima de três anos, onde se nomeia um orientador para acompanhar, auxiliar e orientar o adolescente, orientador esse que pode restringir alguns direitos seus, em interferir na sua liberdade - e duas privativas de liberdade - semiliberdade e internação (ambas vigentes por prazo indeterminado e pelo período máximo de três anos, exigindo-se reavaliações da necessidade da medida no máximo a cada seis meses. A diferença entre as medidas é que na semiliberdade há privação parcial da liberdade, já que o adolescente só se recolhe à instituição para repouso noturno. Em ambas essas medidas se autoriza que o adolescente pratique atividades externas, mas na internação o juiz, justificadamente, pode proibir essas atividades. No caso da internação, embora haja o direito do adolescente de receber visitas semanais, o juiz poderá suspender as visitas em havendo fundado receio de prejuízo para o adolescente). 

As medidas privativas de liberdade (semiliberdade e internação) devem obedecer aos princípios da brevidade e excepcionalidade. 

Pelo princípio da brevidade, uma vez imposta uma dessas medidas, elas, porque presumidamente prejudiciais ao adolescente já que o afastam da convivência familiar, devem cessar o mais rapidamente possível, motivo pelo qual se exige a reavaliação da sua necessidade no máximo a cada seis meses. 

Pelo princípio da excepcionalidade, as medidas privativas de liberdade só têm cabimento como “ultima ratio”, como derradeira trincheira. Assim, além da necessidade de preenchimento dos requisitos legais para a sua aplicação, a semiliberdade e a internação só podem ser aplicadas quando extremamente necessárias, nos casos em que não houver nenhuma outra medida adequada ao caso concreto. 

São requisitos para imposição de internação e semiliberdade (basta o preenchimento de um): 

I - ato infracional praticado com grave ameaça ou violência à pessoa. Com base nesse requisito, a violência ou a grave ameaça devem constar do tipo penal para autorizarem a internação. É o que ocorre, por exemplo, no roubo ou no estupro. Não se pode presumir a violência ou a ameaça, como fazem alguns ao dizer que no tráfico de entorpecentes há “violência contra a sociedade”. 

Além disso, a violência deve ser contra a pessoa, e não contra a coisa (como ocorre no furto). 

Ademais, também não podem ser consideradas violência contra a pessoa as violências “patrimonial” ou “moral” da lei Maria da Penha, já que, nesses casos, não se emprega força física. No mesmo sentido, no estupro de vulnerável (estupro em que há presunção de violência, por ser a vítima menor de 14 anos ou doente mental) não há violência física, não havendo, pois, o preenchimento desse requisito. 

II - reiteração de atos graves. Seriam graves atos como o tráfico de drogas e o porte ilegal de arma de fogo. Esses crimes, porque não revestidos de violência contra a pessoa ou ameaça grave, não podem redundar em uma internação em primeira condenação. Mas, em havendo reiteração, porque graves, admitem a internação. 

A palavra reiteração possui duas interpretações: 

a) Prática de dois atos infracionais, em similitude com a expressão “reincidência”, mas sem a necessidade do trânsito em julgado do primeiro para que haja reiteração; 

b) Prática de três atos, diferenciando-se, assim, da reincidência, instituto para o qual bastam dois atos. Essa é a posição predominante do STJ, até mesmo porque a letra da lei fala em “reiteração de outras infrações graves”, de modo que, se bastassem duas, deveria dizer “reiteração de outra infração grave”.
Não podem ser computados para fins de reiteração atos infracionais que foram objeto de remissão, já que a remissão não gera comprovação da responsabilidade, tampouco implica computação de antecedentes.

III - descumprimento reiterado e injustificável de medida anteriormente imposta. É o caso de internação-sanção. Se o adolescente descumpre de forma reiterada (para o STJ, pelo menos três vezes) medida em meio aberto (liberdade assistida ou prestação de serviços à comunidade), deve ser ouvido para se justificar (Súmula 265, STJ) e, tendo se mostrado injustificado o descumprimento, lhe é imposta, como punição por esse descumprimento, internação pelo prazo máximo de três meses. Depois de cumprida essa internação, retoma-se o cumprimento da medida em meio aberto anteriormente fixada. Não se pode impor internação-sanção pelo descumprimento de medida em meio aberto cuja imposição decorreu de concessão de remissão.

A medida de internação e semiliberdade é cumprida em unidade exclusiva para adolescentes, estabelecida separação por critérios de idade, compleição física e gravidade da infração. São direitos do adolescente privado de liberdade: receber Documentos ao sair; ter Respeito e dignidade; entrevistar-se com o MP; conhecer o andamento do Processo; avistar-se reservadamente com o Defensor; Peticionar diretamente; realizar atividades Culturais, esportivas e de lazer; ter acesso a Objetos necessários à higiene pessoal; Corresponder-se com amigos e família; manter consigo Objetos pessoais, tendo local para guardá-los e receber comprovante dos mantidos com a entidade; habitar alojamento em condições de higiene e Salubridade; receber assistência Religiosa, segundo sua crença, se quiser; ter acesso aos meios de Comunicação social; ser internado na unidade mais Próxima do seu domicílio e dos seus pais; receber escolarização e Profissionalização; receber Visitas, ao menos semanalmente.

Para que seja aplicada medida socioeducativa, é imprescindível que haja PROVAS suficientes da autoria e da materialidade do delito. Com relação à medida de advertência, contudo, a lei só exige prova da materialidade, bastando indício de autoria (alguns autores entendem essa previsão inconstitucional, já que não se poderia punir com advertência pessoa que não tenha comprovadamente agido de forma delitiva, até mesmo porque essa advertência, embora pareça medida “boba”, pode autorizar, no futuro, que um adolescente seja internado com base na reiteração.

A medida socioeducativa pode ser aplicada pelo juiz cumulativamente com uma medida de proteção, que, repita-se, não tem natureza punitiva e visa a resguardar direitos. O juiz pode, ainda, comprovada a materialidade e autoria delitiva, deixar de aplicar a medida socioeducativa e impor apenas medida de proteção, em atenção ao melhor interesse do adolescente, por entender desnecessária a punição, já que o art. 112 do ECA fala que o juiz PODERÁ (e não deverá) aplicar aos adolescentes medida socioeducativa.

Assim, medida socioeducativa só deve ser aplicada quando estritamente necessária, nos casos em que a intervenção do Estado é devida porque a família e a sociedade não deram conta de interromper eventual comportamento delitivo.

Com relação à possibilidade de se cumular duas medidas socioeducativas, há dois posicionamentos:

Uma primeira corrente entende possível essa cumulação, desde que haja compatibilidade das medidas. Essa corrente também entende possível a substituição de uma medida por outra, tanto para fins de progressão quanto para fins de regressão – no caso de regressão, inclusive para regime fechado, seria necessária a ouvida do adolescente para fins de exercício de ampla defesa, nos termos da súmula 265 do STJ. Esse posicionamento entende que a sentença que julga ação socioeducativa procedente e impõe medida socioeducativa não faz coisa julgada, pois, ao se alterar a medida anteriormente imposta, altera-se o conteúdo da sentença.

Já para uma segunda corrente, com a qual eu me filio, não se pode cumular medidas socioeducativas, mas apenas se cumula uma medida socioeducativa com medidas de proteção. Quanto à substituição de uma medida socioeducativa por outra, isso só pode ocorrer na forma de progressão (isto é, passagem para medida mais branda) ou entre medidas socioeducativas em meio aberto, de modo a se dar concretude ao mandamento de que deve-se respeitar a capacidade de o adolescente cumprir a medida. Nesse sentido, seria ilegal impor a regressão de uma medida em meio aberto para uma privativa de liberdade, porque haveria, no caso, desvio de execução, já que no momento da sentença o juiz havia entendido pela não necessidade de privação da liberdade. Ademais, não poderia o ECA, lei federal, rasgar a garantia constitucional da imutabilidade da coisa julgada.

Assim, regressão de medida socioeducativa só poderia haver diante da previsão legal do art. 122, III, do ECA, que prevê o caso de internação-sanção: diante do descumprimento reiterado e injustificado de medida em meio aberto anteriormente imposta por sentença condenatória, exercido o direito de defesa do adolescente (S 265, STJ), pode ser imposta como punição por esse descumprimento uma medida privativa de liberdade pelo prazo máximo de três meses. Ultrapassado esse prazo, o adolescente retorna à medida em meio aberto outrora imposta para terminar de cumpri-la.

Por fim, se questiona se, quando o juiz fixa em sentença condenatória MSE privativa de liberdade, em havendo progressão, seria possível, depois, regredir a medida, fazendo-se retornar a privação de liberdade. Aqui também há dois posicionamentos:

Para uma primeira corrente, nada impediria essa regressão pós progressão, já que não haveria extrapolação dos limites da coisa julgada. Com efeito, desde logo, a sentença já havia entendido cabível privar a liberdade do adolescente.

Para uma segunda corrente, incabível é a regressão depois de ter o adolescente progredido, já que, estando o adolescente em cumprimento de medida em meio aberto, em caso de descumprimento dessa, é caso de imposição de internação-sanção pelo período máximo de três meses, e não de regressão para uma medida de internação por prazo indeterminado. Essa corrente parece melhor atender ao princípio do melhor interesse do adolescente.

2.2: Ação socioeducativa: aspectos processuais

Nessa aula, seguimos no estudo do Estatuto da Criança e do Adolescente para tratarmos de alguns temas relevantes que medeiam o processo socioeducativo, de maior interesse para os operadores do Direito 

Competência

É competente para a aplicação de medida socioeducativa o juiz da infância e juventude, já que essa atividade é tipicamente jurisdicional – nesse sentido, a Súmula 108 do STJ (já no caso de criança que pratica ato infracional, a criança é encaminhada diretamente ao Conselho Tutelar, que, agindo administrativamente, tem competência para impor medida protetiva (sem prejuízo de controle pelo Poder Judiciário, já que “a lei não excluirá da apreciação do PJ lesão ou ameaça a direito”).

Prescrição Penal

Conforme a Súmula 338 do STJ, a prescrição penal é aplicável às MSE. Discute-se apenas como aplicá-la. Há duas correntes:

1) Tem-se por base a pena máxima cominada ao crime, inserida nos critérios do art. 109 do Código Penal. Por exemplo, no caso do roubo, que tem pena de 4 a 10 anos, a pena máxima é de 10, logo, a prescrição ocorreria em 16 anos reduzidos à metade, isto é, em 8 anos.

2) Tem-se por base sempre a pena máxima das MSE, que é de 3 anos. Logo, a prescrição ocorreria em 8 anos reduzidos à metade, isto é, em 4 anos.

Remissão

A REMISSÃO pode ser classificada de três formas:

1) quanto ao momento procedimental, pode ser 

(a) pré-processual – concedida pelo promotor, antes do início do processo e como forma de exclusão do processo;

(b) processual – concedida pelo Juiz, depois do início do processo e como forma de suspensão ou extinção do processo.

2) quanto ao sujeito, pode ser:

(a) ministerial – concedida pelo promotor, antes do início do processo e como forma de exclusão do processo;

(b) Judicial - concedida pelo Juiz, depois do início do processo e como forma de suspensão ou extinção do processo.

3) quanto à forma, pode ser:

(a) de exclusão do processo - concedida pelo promotor, antes do início do processo e como forma de exclusão do processo;

(b) de suspensão do processo - concedida pelo Juiz, depois do início do processo e que gera a suspensão do processo;

(c) de extinção do processo - concedida pelo Juiz, depois do início do processo e que gera a extinção do processo.

Diante disso, pode-se verificar que a remissão pode tomar dois caminhos:

Em uma primeira possibilidade, ela ocorre antes do momento de início da Ação Socioeducativa, logo após o promotor ouvir o adolescente naquilo que se chama de oitiva informal. Nesse momento, o promotor pode representar o adolescente (ato que equivale à denúncia no processo penal), arquivar o termo circunstanciado ou conferir remissão. É a remissão pré-processual. Atendendo as circunstâncias e conseqüências do fato, ao contexto social e à personalidade do adolescente e sua maior ou menor participação no ato infracional, conferirá ao adolescente remissão, que é uma espécie de perdão, que não importa reconhecimento ou comprovação da responsabilidade, nem gera antecedentes. Concedida a remissão pelo promotor, deverá o juiz homologá-la e, se não o fizer por discordância, deverá encaminhar os autos ao Procurador Geral de Justiça, que é chefe do MP Estadual, que poderá concordar com o promotor e requerer a concessão da remissão ou discordar, oferecendo ele a representação ou delegando a função para outro promotor fazê-lo (já que não se pode obrigar o primeiro promotor a agir contra a sua vontade diante de sua autonomia funcional).

Em uma segunda possibilidade, oferecida a representação, em qualquer momento do processo antes da sentença (o que normalmente ocorre na audiência de apresentação), o juiz poderá conceder a remissão, ouvidas as partes. Essa remissão, que é a processual, pode gerar dois efeitos: pode extinguir o processo (se não vier cumulada com nenhuma MSE) ou pode suspender o processo (no caso de aplicação conjunta de MSE não privativa de liberdade). Nunca se pode cumular remissão com MSE privativa de liberdade.

Em havendo cumulação, exige-se a aceitação do adolescente; caso o jovem não aceite, o processo obrigatoriamente tem que continuar.

No caso de remissão que suspende o processo, o cumprimento da MSE negocialmente imposta ao adolescente gera a extinção do processo. Caso, contudo, o adolescente não cumpra a medida (e basta não cumprir uma vez), não é caso de imposição de internação-sanção (a qual só pode decorrer de não cumprimento de MSE fixada em sentença condenatória): deve-se permitir a sua justificativa a respeito e, não sendo aceita esta, o processo, que estava suspenso, volta a correr, de modo que, ao final, lhe poderá ser imposta uma MSE definitiva, inclusive de privação de liberdade.

Questiona-se se é possível cumular MSE com a remissão conferida pelo MP (remissão pré-processual).

Para uma primeira corrente, seria possível essa cumulação, à vista de o ECA não fazer nenhuma distinção quanto à possibilidade de cumulação nos casos de remissão processual e pré-processual.

Para uma segunda corrente, que prevalece e tem por base a S 108 do STJ, essa cumulação não seria possível, já que a aplicação de MSE é de competência exclusiva do juiz.

Para uma terceira corrente, adotada pelo STF, embora o promotor não possa aplicar MSE, esse, ao conceder a remissão pré-processual, pode sugerir ao juiz que determinada medida seja imposta ao adolescente. Nesse caso, o juiz decidirá a respeito quando da homologação da remissão.

Em qualquer caso de cumulação de remissão com medida socioeducativa, deve o adolescente ser ouvido a respeito; caso não concorde, o processo deverá ter seguimento.

Garantias processuais

O adolescente possui as seguintes garantias processuais:

(A) ter defesa técnica de advogado; 

(B) solicitar a presença dos pais em qualquer fase do processo; 

(C) ter igualdade na relação processual, podendo confrontar vítimas e testemunhas e produzir provas; 

(D) ser ouvido pessoalmente pela autoridade competente; 

(E) ter conhecimento formal da atribuição do ato infracional; 

(F) ter acesso à assistência judiciária gratuita, se dela for necessitado.

Rito da Ação Socioeducativa

Com relação ao procedimento de apuração de ato infracional, suas regras gerais estão no ECA.

Subsidiariamente, são aplicadas as regras do CPP e, no caso dos recursos, do CPC.

As ações judiciais de competência da Justiça da Infância e Juventude são isentas de custas, ressalvada a litigância de má fé.

Tudo começa na fase policial. Conforme o art. 106 do ECA, nenhum adolescente será privado de sua liberdade senão em flagrante de ato infracional ou por ordem escrita e fundamentada de juiz. Assim, a apreensão do adolescente pode ocorrer por ordem judicial ou por flagrante de ato infracional (as hipóteses de flagrante são as do CPP). No primeiro caso, o adolescente é encaminhado ao juiz; no segundo, à autoridade policial. Se houver concurso de um maior com um adolescente na prática do ilícito, havendo repartição de polícia especializada (DJU), ambos devem ser a princípio encaminhados para lá.

O adolescente tem direito à identificação dos responsáveis pela sua apreensão, devendo ser informado sobre seus direitos, entre os quais o de permanecer calado, ter assistência da família e de advogado.

A apreensão de qualquer adolescente será incontinenti comunicada à autoridade judiciária e à família do apreendido ou à pessoa por ele indicada. A omissão gera o crime do art. 231 do ECA. Aqui, não se pode admitir sequer a dilação do prazo de 24 horas. A comunicação deve ser imediata para evitar traumas de uma apreensão ilegítima (isso porque a comunicação ao juiz possibilita a aferição da legalidade da apreensão, viabilizando-se a pronta liberação do adolescente). O não exame da possibilidade de imediata liberação do adolescente, tanto pela autoridade policial quanto pelo juiz, gera o crime do art. 234 do ECA.

Se o flagrante foi cometido com violência ou grave ameaça à pessoa, autoridade policial deve lavrar o auto de apreensão, ouvidas testemunhas e adolescente. Se não houve violência ou ameaça, lavra-se boletim de ocorrência circunstanciada.

Em ambos os casos, deve-se apreender os produtos e instrumentos da infração e requisitar os exames e perícias para fins de reunião de provas de autoria e materialidade.

Surgem duas possibilidades para a autoridade policial:

1) Liberação do adolescente: comparecendo qualquer dos pais ou responsável, o adolescente será prontamente liberado, sob termo de compromisso e responsabilidade da sua apresentação ao promotor em oitiva informal no mesmo dia ou, sendo impossível, no primeiro dia útil imediato. Sendo liberado o adolescente, a autoridade policial encaminhará ao MP cópia do auto de apreensão ou TC. Se, afastada a hipótese de flagrante, houver indícios de participação do adolescente no ato infracional, a autoridade policial encaminhará ao MP relatório das investigações e documentos.

2) Não liberação do adolescente: nos casos de não comparecimento dos pais /responsável ou quando, pela gravidade do ato infracional e sua repercussão social, deva o adolescente permanecer sob internação para garantia de sua segurança pessoal ou manutenção da ordem pública. Nesses casos, a autoridade policial encaminhará o adolescente desde logo ao MP, com cópia do auto de apreensão ou TC. Não sendo possível, o encaminhará à unidade de atendimento (e, na falta dessa, à delegacia especializada) e fará sua apresentação em 24 horas. Na falta de delegacia especializada, ficará em seção isolada da delegacia comum. O excesso do prazo de 24 horas importa o crime do art. 235 do ECA.

O adolescente não poderá ser conduzido em compartimento fechado de veículo policial em condições que atentem contra sua dignidade ou o coloquem em risco (camburão), tampouco poderá ser submetido ao uso de algemas sem que haja necessidade (SV 11), sob pena de responsabilidade (crime do art. 232 do ECA).

Apresentado o adolescente, o MP, tendo acesso ao TC e aos antecedentes, procederá à sua oitiva e, se possível, dos seus pais /responsável, vítima e testemunhas.

Em caso de não apresentação, o MP notificará os pais para apresentação do adolescente, podendo requisitar o concurso das polícias civil e militar.

Depois da oitiva, o MP poderá: arquivar, conceder remissão pré-processual ou representar o adolescente (equivalente à denúncia no processo penal).

 Nos casos de arquivamento ou remissão, deverá o juiz homologá-los; não o fazendo, os autos vão para o Procurador Geral de Justiça, que poderá requerer a concessão da remissão /arquivamento, representar o adolescente ou nomear outro promotor para fazê-lo (já que não se pode obrigar o primeiro promotor a agir contra a sua vontade diante de sua autonomia funcional).

Havendo indícios de materialidade e autoria, é oferecida a representação, com resumo dos fatos, classificação do ato infracional e rol de testemunhas. Nada impede que a representação seja oferecida oralmente pelo promotor, caso em que será reduzida a termo. Quanto ao número máximo de testemunhas, seguem-se as regras do CPP: no máximo 5, se o crime correspondente tem pena máxima inferior a 4 anos, ou no máximo 8, se o crime correspondente tem pena máxima igual ou superior a 4 anos.

O juiz deixará de receber a representação, contudo, se a representação não tem o resumo dos fatos ou a tipificação do ato infracional, se o agente praticou a infração na época em que era criança ou é adulto, se a conduta não constitui ato infracional ou se já se operou a prescrição etária, por ter o agente 21 anos completos. Não sendo recebida a representação, cabe apelação, no prazo de dez dias e com juízo de retratação.

Recebida a representação, tem início a fase judicial. Cabe ao juiz, nesse momento, duas tarefas: 1) decidir sobre a decretação ou a manutenção da internação provisória do adolescente e 2) designar audiência de apresentação.

Com relação à internação provisória, deve-se lembrar que ela tem duração máxima de 45 dias (que é o período máximo de duração do processo em estando o adolescente internado. Superado esse prazo, o adolescente deve ser colocado em liberdade, cabendo HC. A sua não liberação importa o crime do art. 235 do ECA.

Nenhum adolescente será privado de sua liberdade sem o devido processo legal.

Para que seja cabível internação provisória, deve haver indícios de materialidade e autoria delitiva. Devem, ainda, restar preenchidos os requisitos da prisão preventiva: fim de garantia da ordem pública, da ordem econômica, por conveniência da instrução criminal ou para assegurar a aplicação da lei penal. Alguns autores consideram cabível a internação provisória para a garantia da segurança pessoal do adolescente o que parece inconstitucional, porque desproporcional. Para a garantia do adolescente, não se deve puni-lo com a privação do bem que lhe é mais significativo – a liberdade – mas sim acionar a rede protetiva. Por ser medida cautelar, a internação só cabe se houver no caso concreto a possibilidade de o adolescente, ao final do processo, ser condenado à medida privativa de liberdade (exige-se, então, ato praticado com violência à pessoa ou ameaça grave, reiteração de atos graves e necessidade imperiosa da medida).

A internação não poderá ser cumprida em estabelecimento prisional. Não havendo instituição própria para a sua efetivação, o adolelcente deve ser transferido para a localidade mais próxima onde haja essa unidade. Se impossível a pronta transferência, pode permanecer em seção isolada da delegacia comum pelo prazo máximo de 5 dias, sob pena do crime do art. 235 do ECA (embora o STF já tenha reconhecido ser possível que, excepcionalmente, o adolescente permaneça mais de 5 dias na delegacia comum, desde que em seção isolada (STF – HC 81519/MG).

O adolescente civilmente identificado não será submetido à identificação criminal, salvo para efeito de confrontação, havendo dúvida fundada, ou em uma das demais hipóteses da Lei 12.037/09.

Com o recebimento da representação, além de decidir sobre a internação provisória do adolescente, o juiz também deve designar audiência de apresentação. Ao fazê-lo, deverá cientificar os pais /responsáveis do adolescente do teor da representação e notificá-los a comparecer na audiência, acompanhados de advogado.

Não sendo localizados os pais /responsável do adolescente, será nomeado curador especial para o adolescente. Se não é localizado o adolescente, o juiz expedirá mandado e busca e apreensão, determinando o sobrestamento do feito até a efetiva apresentação, sem prejuízo da notificação dos pais /responsável.

Comparecendo o adolescente, a autoridade realizará a sua oitiva, podendo solicitar a opinião de profissional qualificado. Se o adolescente notificado injustificadamente não comparecer, o juiz designará nova data e determinará a sua condução coercitiva.

Se o juiz entender adequada a remissão processual, pura e simples ou cumulada com MSE, ouvirá as partes e proferirá a decisão.

Sendo o fato grave, se o adolescente não está acompanhado de advogado, o juiz nomeará defensor para o ato e designará audiência em continuação, podendo determinar a realização de diligências e estudo do caso.

A Súmula 342 do STJ assegura o direito do adolescente de produzir provas em audiência ao determinar que a mera confissão do jovem não autoriza uma condenação.

O defensor, então, terá prazo de 3 dias para oferecer defesa prévia e rol de testemunhas (máximo de 5, se o crime correspondente tem pena inferior a quatro anos, ou 8, se igual ou superior a quatro).

Na audiência em continuação, ouvidas as testemunhas, cumpridas as diligências e juntado o relatório da equipe interprofissional, serão realizados os debates, tendo MP e defesa 20 minutos, prorrogáveis por mais 10. Em seguida o juiz proferirá sua decisão.

O juiz não aplicará qualquer medida se o fato descrito na denúncia não existiu ou não configura ato infracional ou se não restou provada a materialidade ou a autoria delitiva.

Em caso de absolvição, o adolescente internado provisoriamente será de imediato colocado em liberdade.

A intimação de sentença condenatória a MSE privativa de liberdade deve ser feita ao defensor e ao adolescente (devendo esse último manifestar sobre o desejo de recorrer). Não encontrado o adolescente, a intimação será feita ao defensor e aos pais do adolescente.

No caso de imposição de medida não privativa de liberdade, a intimação é feita apenas ao defensor.

Por fim, da sentença cabe apelação, no prazo de 10 dias, com juízo de retratação.

Todos os recursos, aliás, cabíveis para o adolescente obedecem às regras do Código de Processo Civil, com a ressalva de que têm prazo idêntico de 10 dias, exceto no caso de embargos de declaração, caso em que o prazo é de 05 dias. MP não tem prazo em dobro (causaria desequilíbrio entre as partes). A Defensoria Pública, pela situação fática de esta instituição ainda não estar devidamente instalada por todo o território nacional, possui prazo em dobro – até o dia em que não mais carecer de estabelecimento e aparelhamento. Fala-se que a regra encontra-se em inconstitucionalidade progressiva.

Módulo 3: Medida socioeducativa: educação ou punição?

3.1: Conteúdo da medida socioeducativa e seus consectários

Muito se discute acerca da natureza jurídica da medida socioeducativa.

Realmente, parte da doutrina afirma que medidas socioeducativas visam a ressocializar adolescentes, inexistindo nelas qualquer elemento punitivo. De acordo com esses doutrinadores, conferir natureza punitiva às medidas socioeducativas desvirtuaria as finalidades da doutrina da proteção integral, a qual não busca punir, mas sim efetivar realmente os direitos das crianças e adolescentes, por meio, inclusive, de intervenções pedagógicas, se necessário. E essas medidas socioeducativas, para esses autores, inclusive a internação, seriam nada menos que essas intervenções pedagogias necessárias. 

Outra parte da doutrina, com a qual me filio, defende a existência de faceta punitiva da medida socioeducativa. Segundo esse entendimento, se se perguntar a um jovem o que significa para ele ser internado, ele responderá imediatamente que acredita que está sendo punido.

Com efeito, não só a internação, mas todas as espécies de medidas socioeducativas (advertência, reparação, prestação de serviços à comunidade, liberdade assistida, semiliberdade e internação) importam a restrição de direitos fundamentais e possuem características indiscutíveis de punição, exigindo o seu cumprimento imperativo.

Sendo acolhida a segunda posição, verifica-se que a medida socioeducativa tem natureza complexa, já que se reveste de uma esfera punitiva e de outra pedagógica.

Veja-se que a medida socioeducativa possui um conteúdo penal (idêntico ao conteúdo das penas do adulto, por ser punitivo e imperativo) envolto em uma roupagem instrumental, que representa a sua finalidade pedagógica, a qual, embora também existente nas penas dos adultos, revela-se muito mais acentuada na esfera infanto-juvenil (tanto que o ECA traz regras especiais, diferentes das dos adultos, para assegurar que a punição se dê de maneira mais pedagógica e educativa).

Reconhecida essa natureza complexa da medida socioeducativa, dela decorre o reconhecimento, em prol do adolescente, das mesmas garantias penais que protegem o adulto. Ora, se o adulto acusado ou condenado tem direito a um conjunto de garantias penais e processuais penais, e se a medida socioeducativa tem conteúdo punitivo idêntico ao da pena do adulto, o adolescente em conflito com a lei, quando acusado ou condenado, também deve ter direito a essas garantias penais e processuais penais, que devem acompanhar o jovem durante toda a ação socioeducativa.

Se se entendesse que a medida socioeducativa tem natureza meramente pedagógica ou fosse apenas um “bem” para o adolescente, esta seria imposta pelo magistrado em casos banais (como em pequenos conflitos de convivência escolar) sem a observância de um mínimo de garantias penais. Dessa forma, voltaríamos à época tutelar, em que o juiz, em prol de um questionável “bem” do adolescente em situação irregular, impunha internações por períodos indeterminados (que normalmente perduravam até a sua maioridade), sem obediência ao princípio do contraditório e independentemente da efetiva prática de qualquer ato infracional.

 Ora, medida socioeducativa não se confunde com medida protetiva. Esta última é integralmente pedagógica e protetiva, podendo ser aplicada independentemente de maiores formalidades (inclusive pelo conselho tutelar). Já ao se aplicar medida socioeducativa se está punindo e, em se tratando de punição, é preciso haver limites garantísticos.

Note-se que a discussão ganha importância porque, exemplificativamente, em muitos casos de violência escolar, o diretor do estabelecimento de ensino procura a Justiça para fins de aplicação de medidas socioeducativas aos adolescentes em situações que não denotam tamanha gravidade, e que, por isso, deveriam ser resolvidas pela própria escola, sem ensejar uma punição estatal. Mas, na prática, não é isso que ocorre... Como todos nós sabemos, esse não é o caminho, não é mesmo? Onde está a tolerância?
Desse modo, o reconhecimento da faceta punitiva das medidas revela-se indispensável para que não haja dúvidas acerca da necessidade de observância de princípios como o do devido processo legal, do contraditório e da ampla defesa, da legalidade, da igualdade, da INTERVENÇÃO MÍNIMA, da individualização da punição, da lesividade, da celeridade processual...

Nesse sentido, o reconhecimento da natureza punitiva da medida socioeducativa impede que essas medidas sejam impostas por prazo absolutamente indeterminado ou sem a comprovação da prática de atos infracionais efetivamente violadores de bens jurídicos.

Assim, diante da possibilidade do Estado de cercear direitos fundamentais do adolescente, se torna imperativo resguardá-lo com garantias que impeçam o arbítrio estatal no exercício do ius puniendi, inclusive no que diz respeito à seara do processo socioeducativo.

3.2: Influências penais no estudo dos direitos infanto-juvenis: uma interpretação...

Esse texto constitui um aprofundamento dos temas já tratados anteriormente. Partindo-se de comparações entre períodos históricos do Direito penal e do Direito infanto-juvenil, evidenciam-se as similitudes existentes entre pena e medida socioeducativa.

Influências penais no estudo dos direitos infanto-juvenis: uma interpretação sistemática do Direito

Desde que o homem decidiu viver em sociedade existe a necessidade de manutenção da ordem e da paz social.

 Inicialmente, a garantia da manutenção desse estado de ordem derivava da obediência à moral, aos costumes e a outros fatos sociais. Com o tempo, também para cumprir essa função de garantia da ordem e da paz públicas, surgiram as leis, que correspondem a comandos coercíveis de conduta. Coercíveis pq, quando descumpridos, podem ensejar conseqüências jurídicas.

Identificando-se a espécie de conseqüência jurídica imposta a uma pessoa que descumpre as regras jurídicas, podemos identificar quais são as regras penais. Elas correspondem justamente àquelas acionáveis para a proteção dos bens jurídicos mais importantes para o homem (como a vida, a liberdade, a honra, o patrimônio etc).

Direito penal é o conjunto de princípios e regras que, de um forma geral, regulamenta como se opera o confronto entre o ius puniendi e o ius libertatis, ou seja, como se opera o direito de punir do estado, impondo-se a ele limites a vista das garantias constitucionais libertárias dos indivíduos.
Dito isso, é importante traçar um histórico evolutivo do direito penal, para depois compará-lo ao direito da infância e da juventude.

            No início, o direito penal consubstanciava-se em regras consuetudinárias assecuratórias da vingança, quer privada, quer divina, quer pública. A vítima, o sacerdote ou o monarca poderiam impor penalidades àqueles que violassem as regras sociais. Essas penalidades eram desproporcionais, desumanas, cruéis... Com o passar do tempo, passaram a se limitar à dimensão do mal causado (regra do talião, fundadas no ditado “olho por olho, dente por dente”).

            Mas a ciência penal realmente surge no período da revolução francesa, quando, buscando-se a autonomia e liberdade do indivíduo em face do estado absolutista, pregou-se por penas proporcionais, humanitárias, previamente previstas na lei. Esse foi o período da escola clássica, do qual se extraem os ensinamentos de Beccaria, que já ensinava que mais vale a certeza da punição do que a sua intensidade ou duração. Nesse período, o crime era estudado abstratamente as pessoas eram punidas como conseqüência das suas condutas, tidas como livres. As pessoas, uma vez dotadas de livre arbítrio, se optassem por delinquir, receberiam uma punição, punição esta capaz de evitar a barbárie, porque proporcional, humanitária e previamente prevista na lei.

            Seguindo a escola clássica, o período científico surgiu no momento histórico da revolução industrial, período de concentração das pessoas nas cidades, de jornadas de trabalho exaustivas, de altas taxas de desemprego e do consequente aumento da criminalidade.

            Com isso, houve uma mudança de foco na seara do direito: o direito penal deixou de se preocupar com a proporcionalidade e humanidade das penas para voltar seu foco para a redução e prevenção da criminalidade.

            Nesse momento, em que afloravam os estudos das ciências naturais, estudiosos como Lombroso tentavam encontrar padrões de comportamento dos criminosos para tentar antever comportamentos criminosos. Indivíduos com determinadas características físicas ou inseridos em determinados meios sociais, por serem considerados perigosos, passaram a se submeter preventivamente a medidas penais, permanecendo sob a custódia do Estado por tempo indeterminado, até o desaparecimento da sua periculosidade.

            As penas, aqui, buscavam não uma punição proporcional, mas a prevenção dos crimes. Presumia-se que algumas pessoas não tinham livre arbítrio, estando condicionadas a delinquir, porque loucas, doentes, ou portadoras de um comportamento atávico, animalesco. Retirava-se essas pessoas da sociedade pelo tempo necessário à sua cura. Essa era a escola positivista.

            Com algumas variações doutrinárias, outras escolas fundamentavam a pena na necessidade não de cura, mas de reeducação do criminoso, chegando a alegar que, ao se aplicar penas, o estado não estaria exercendo qualquer poder de punir, mas sim um dever de educar, que seria benéfico ao condenado (como é o caso da escola correcionalista). Com as escolas ecléticas, mixaram-se as finalidades de retribuição, de prevenção e de ressocialização. A pena busca não só punir, mas também reeducar e evitar novos delitos. Rompe-se o liame divisório entre as escolas clássica e positivista em prol de uma visão mais realista das penas.

            A situação mantém-se até que as preocupações do direito voltam-se exclusivamente para o estudo da norma. Aqui, o direito ganha total autonomia perante as ciências naturais, revestindo-se de um forte rigor científico.

            A preocupação da pena volta a ser essencialmente a de punir aquele que infringe a norma.

          A grande preocupação com a validade da forma da norma faz com que desapareçam ou sejam mitigadas as preocupações com relação ao seu conteúdo de justiça. A esse período associa-se o brocardo “dura Lex sed Lex”, ou seja, a lei é dura - mas é a lei, devendo ser obedecida e ponto final.
        
         O momento mais crítico desse raciocínio levou à criação de uma corrente doutrinária que defende o chamado direito penal do inimigo, que encara o criminoso como um inimigo do estado, que merece perder suas garantias processuais e ser punido às duras penas, em nome de uma suposta necessidade de restabelecimento da ordem social e da segurança pública. Aqui, aplica-se aquilo que se chama de direito penal do autor: perseguem-se pessoas (os inimigos do Estado), e não crimes. Com base nesse pensamento é comum a defesa dos trabalhos forçados, das execuções sumárias, das prisões perpétuas e da pena de morte...

            Esse tipo de posicionamento é costumeiramente difundido pela mídia e aceito pela sociedade, que, sem se preocupar em cobrar do Estado a adoção de políticas públicas satisfatórias, de uma forma cômoda entende que atribuir direitos e garantias para bandidos seria um contrassenso em um país de desigualdade social que não é capaz de oferecer uma vida digna sequer ao trabalhador honesto.

            Nesse sentido, a mistificação da criminalidade como sendo um problema muito maior do que ele realmente é, bem como a banalização da violência, que é aceita nas relações familiares, nas escolas, nos espaços públicos e nas delegacias, leva a sociedade a querer a todo custo impor uma punição, não necessariamente dentro do sistema formal, mas que seja obrigatoriamente vingativa, dolorosa e sangrenta.

            Esse tipo de pensamento foi endossado pela escola de kiel, que, entendendo o direito penal como mecanismo de expurgação da sociedade dos inimigos do Estado, defendia o excesso de rigor formal da lei (ou seja: a lei existe e, independentemente do seu conteúdo, deve ser cumprida a todo custo), bem como a redução de garantias penais do ser humano. Essa escola fez surgir o direito penal nazista. Direito legal, mas nada legítimo. Com o tempo, percebeu-se que esse excesso de rigor e de formalismo prejudicava o alcance dos ideais de justiça. Com isso, sobrevieram algumas escolas jurídicas tentando retomar e aperfeiçoar valores de proporcionalidade e de humanidade previstos séculos atrás, desde os ensinamentos de Beccaria.

            O ápice dessa reconstrução doutrinária sobreveio com o funcionalismo teleológico de roxin, que prega fidelidade à finalidade do direito penal de tutela de bens significativos para o homem sem menoscabar os direitos do infrator, que deve se sujeitar às garantias de um direito penal mínimo.
            No funcionalismo de roxin, a pena tem finalidade retributiva, preventiva e ressocializadora (como nas escolas ecléticas). Fala-se, mais tecnicamente, em finalidade retributiva, preventiva geral (prevenção) e preventiva especial (ressocialização). 

            Chegado esse ponto, cumpre dizer que, com relação à necessidade do direito penal, nota-se ser ele, nos dias de hoje, indispensável à proteção de bens jurídicos significativos. Sua existência é necessária para a manutenção da ordem social, evitando-se punições informais, feitas quer pelo infrator, quer feitas pelo ofendido.

            Imagine-se o que seria do casal nardoni se não houvessem as garantias protetivas do direito e processo penal (legalidade, humanidade das penas, presunção de inocência, contraditório, ampla defesa...)

            Nesses momentos de grande revolta social, fica nítida a necessidade de haver um conjunto de regras jurídicas de cunho mais impositivo, capazes de retribuir o mal causado pela prática dos crimes e garantir a ordem social e a preservação dos direitos fundamentais – inclusive dos criminosos. Ocorre que, para esse direito penal agir, ele se utiliza de instrumentos necessariamente invasivos (mais contundentes do que as ferramentas do direito civil, por exemplo): busca e apreensão, interceptação telefônica, prisão preventiva. E não há dúvidas de que essas ferramentas invasivas acarretam a limitação dos dtos fundamentais dos indivíduos - inclusive da liberdade.

            E, como se sabe, quem tem poder nas mãos pode ficar tentado a abusar. Diante disso, para se evitar arbítrios do Estado no exercício desse seu poder de punir que decorre da aplicação das regras de direito penal, surge a necessidade de obediência a princípios limitadores da necessária intervenção estatal na liberdade dos indivíduos.

            Nesse momento, identifica-se o significado do garantismo de ferrajoli como conjunto de ppios e garantias existentes em um direito penal mínimo, ponto de equilíbrio entre o abolicionismo penal e o direito penal máximo.

            Percebe-se, diante desse quadro, que o reconhecimento de que as penas têm, além do caráter preventivo e ressocializante, um viés punitivo, faz emergir a certeza de que o Estado possui instrumentos para intervir verozmente no âmbito da liberdade dos indivíduos. Dessa constatação decorre a necessidade de observância de princípios garantistas: legalidade, proporcionalidade, ofensividade, intervenção mínima, responsabilidade pessoal, responsabilidade objetiva, culpabilidade etc.

            Sem esses princípios, o ser humano acusado da prática de um crime poderia ser submetido a uma punição desproporcional, informal e vingativa, em dissonância com os aspectos evolutivos do direito penal moderno.

            Com base nisso, verifica-se o que é o direito penal – cjto de regras para se proteger os bens mais importantes do homem – e quais são os seus contornos de hoje – ele precisa necessariamente ser garantista, ou seja, assegurar que o Estado respeite os princípios que garantem a mínima intervenção na liberdade do indivíduo.

Traçados esses parâmetros, passamos ao estudo do direito da infância e juventude. 

Pretende-se, com isso, evidenciar similitudes da sua história com o já tratado desenvolvimento do direito penal. 

Inicialmente, vigia o período penal indiferenciado – tratavam-se crianças e adolescentes da mesma forma que adultos, por não se enxergar um motivo real para a concessão de tratamento diferenciado. As punições eram totalmente desproporcionais e desmedidas, nitidamente vingativas – assim como ocorria nos períodos da vingança do direito penal. 

Foi só com o advento do Código de menores de 1927 que pela primeira vez no Brasil o público infanto-juvenil recebeu legislação específica. Iniciou-se aqui a etapa tutelar. 

Como já estudado, esse período consagrou a chamada doutrina da situação irregular: indivíduos de pouca idade, se se encontrassem em situação tida como irregular, situação essa aferível discricionariamente pelo juiz, seriam destinatários das regras da legislação especial. 

A partir daí, o juiz passa a se preocupar com as crianças e adolescentes. de uma maneira diferenciada, chegando a se intrometer inclusive na seara familiar com o intuito de tutelar esses indivíduos. Falava-se, por isso, em etapa tutelar. Essa etapa se inaugurou com a criação do primeiro Tribunal de Menores nos EUA, em 1899.

No Brasil, foram criados dois códigos de menores: o de 27 (conhecido como Mello Matos) e o de 79. Ambos mantiveram a inimputabilidade dos menores de 14 anos. Inaugurou-se, nessa etapa, a chamada Doutrina da Situação Irregular, que autorizava a internação de crianças e adolescentes por prazo indeterminado pela simples constatação de que estes se encontravam em uma situação irregular, a qual poderia se configurar não só com a prática de infrações, mas também em casos como os de abandono familiar, de maus-tratos e inclusive de pobreza.  

Punia-se, assim, por prazo INDETERMINADO, uma criança ou um adolescente pelo simples fato dele ser pobre – vigia, para crianças e adolescentes uma espécie de “direito penal” do autor, onde se punia esses indivíduos não pelo que eles faziam, mas pelo que eles eram: já que eles eram abandonados, ou pobres, ou violentados. Dessa forma, na etapa tutelar o juiz se via autorizado por lei a conferir, por meio de internação por tempo indeterminado, um verdadeiro “tratamento”, uma “cura” a essas crianças, que, no entender da legislação da época, eram seres inferiores, dignos de piedade e necessitados de tutela. 
            
Nota-se, aqui, uma similitude com as regras defendidas pela escola positivista, que via no delinquente um ser doente, atávico, tendente a delinquir – e que, por isso, deveria ser preventivamente privado de sua liberdade, por prazo indeterminado, até o alcance de sua cura. Com isso, o direito do menor revelava verdadeiras preocupações não com o bem-estar do adolescente, mas sim com a manutenção da ordem social.

            E a não visualização do aspecto punitivo da punição do adolescente também nos remete aos ensinamentos da escola de defesa social, que negava o direito de punir do estado por entender que a aplicação de pena era, em essência, benéfica ao adolescente.

            Esse raciocínio menorista levava a uma discriminação negativa de crianças e adolescentes, na contramão dos compromissos assumidos internacionalmente pelo Brasil no sentido de proteger esses indivíduos. Com o advento da Constituição de 1988 e a expressa adoção na legislação doméstica da doutrina da proteção integral, adoção essa decorrente de movimentos sociais voltados à proteção de crianças e adolescentes a incompatibilidade do direito menor com o sistema jurídico brasileiro tornou-se latente. 

            Com isso, em 1990, visando a regulamentar o texto constitucional, adveio o estatuto da criança e do adolescente, com o nítido escopo de inverter a lógica do sistema menorista e proteger efetivamente crianças e adolescentes, inclusive adolescentes. em conflito com a lei. Inicia-se, assim, a terceira etapa desse histórico, chamada de etapa garantista, que torna crianças e adolescentes., antes vistos como objetos de intervenção, verdadeiros SUJEITOS DE DIREITOS, com tratamento especial, pautado no princípio da igualdade, que assegura tratamento desigual aos desiguais. Deu-se início à hoje vigente doutrina da proteção integral, que conferiu às crianças e adolescentes. os princípios da peculiar condição de pessoa em desenvolvimento e da prioridade absoluta.

            A partir de então, crianças e adolescentes não podem mais sofrer as arbitrariedades de um sistema que priva a sua liberdade para fins de segurança pública tão-somente nos casos em que se constata uma vaga situação irregular.

            A aplicação de qualquer medida punitiva pressupõe uma investigação dentro dos critérios de legalidade, um processo que assegure direito ao contraditório e uma condenação a uma das medidas previstas na lei, observada a capacidade de cumprimento do adolescente e em respeito à sua condição de pessoa em desenvolvimento. Nota-se, assim, que o Estatuto trouxe tratamento especial a crianças e adolescentes, tidos agora não como objetos de intervenção estatal, mas como sujeitos de direitos merecedores de uma proteção integral em razão da sua situação de seres humanos em desenvolvimento. Justamente por isso, eles são destinatários da doutrina da proteção integral, que lhes assegura prioridade absoluta na observância dos seus direitos fundamentais. Dito isso, questiona-se: o Estatuto da criança e do Adolescente, interpretado isoladamente, traz ferramentas suficientes à proteção dos direitos dos adolescentes em conflito com a lei? Nesse ponto, urge trazer uma conclusão importante: o adolescente, qndo pratica um crime (tecnicamente um ato infracional) sofre a persecução penal do estado da mesma forma que um adulto. A medida socioeducativa nada mais é do que uma pena imposta ao adolescente – só que com limitações especiais – porque essencialmente pedagógica, à vista da sua situação de desenvolvimento protegida pela doutrina da proteção integral. Dito isso, nota-se que, da mesma forma que o adulto precisa se resguardar contra eventuais excessos do Estado no exercício do seu poder de punir, o adolescente também precisa desse resguardo. E o ECA é bastante tímido – quando não retrógrado no que toca à imposição de limites penais e processuais relacionados à persecução penal. Note-se, nesse sentido, a indeterminação temporal da medida socioeducativa. Ora, verificada a existência de um conjunto de princípios e de regras constitucionais que buscam discriminar positivamente o adolescente, conferindo-lhe um tratamento jurídico mais benéfico e adequado, entende-se que esses indivíduos necessitam receber tutela jurídica mais protetiva do que aqueles que não compõem esse grupo merecedor dessa proteção integral. E esse tratamento jurídico mais benéfico e adequado deve existir sempre, sob pena de o Estatuto não cumprir o seu papel, subvertendo-se a lógica protetiva do ECA.

            Nesse ponto, é imperioso concluir que o adolescente, além de ser destinatário das regras de proteção especial alinhavadas pelo Estatuto, também precisa da proteção de um direito penal mínimo.

            Ora, na linha do pensamento de Cláudia Lima marques, é antiquado o entendimento interpretativo simplificado no sentido de que aplica a lei especial se aplica a situações especiais e a lei geral a situações gerais.

            Com a teoria do diálogo das fontes, embasada em conceitos de equidade e de justiça, tendo-se em vista a inúmera quantidade de leis existentes hodiernamente no nosso ordenamento, não se pode ignorá-las mutuamente e escolher apenas uma legislação aplicável ao caso concreto. O ordenamento é um conjunto de regras que precisa ser visto de forma globalizante e interpretado com coesão.

            Deve-se buscar, em todo o ordenamento, as normas mais adequadas à tutela dos direitos fundamentais dos indivíduos. O papel do juiz não é mais o de meramente aplicar a lei, mas sim o de interpretá-la em consonância com o caso concreto. “In clarit” não cessa a “interpretatio”.

            Desse modo, sendo certo que o ECA traz normas de natureza penal (já que mse não são nada mais do que penas especiais aplicáveis aos adolescentes, levando-se em conta a sua situação de pessoas em desenvolvimento), e não restando dúvidas de que o adolescente precisa se resguardar do arbítrio estatal no exercício do direito de punir, não há razão para lhe negar a aplicação das garantias de um direito penal mínimo, não previstas expressa e totalmente no texto do Estatuto.

            Assim, a lógica do funcionalismo de Roxin, que assegura que o direito penal observará sua finalidade de proteção de bens jurídicos preservando a ordem social sem menoscabar direitos fundamentais, é aplicável ao adolescente em conflito com a lei.

            Negar aplicabilidade desse conjunto de garantias penais pode levar a interpretações do ECA que se assemelham a já ultrapassadas teorias da pena – como ocorria no período tutelar, no qual se buscava não a proteção do adolescente, mas a garantia da ordem pública, em uma linha de pensamento nitidamente positivista. Esse retrocesso não pode ser admitido.

            Assim, o reconhecimento de limites penais garantísticos ao texto do ECA impede penas indeterminadas, condenações sem prova integral de autoria e materialidade, desrespeito à legalidade ou à mínima intervenção, manutenção de punições com fins meramente pedagógicos, sem que haja justa causa.

            Desse modo, a teoria do diálogo das fontes permite a intercomunicação dos textos das normas do Estatuto da Criança e do Adolescente e do Código Penal. Os sistemas não se afastam com base no critério da especialidade, mas se integram, com base no ponto comum que é a existência de medidas punitivas em ambos os sistemas, na busca da melhor solução do caso concreto.

            E não se venha dizer que essa interpretação sistemática do Direito viola o pacto federativo em razão de estar o julgador criando uma terceira lei. Veja-se que tanto o poder legislativo quanto os poderes judiciário e executivo estão igualmente submetidos à Constituição, que traz comandos claros de igualdade, de justiça e de não discriminação. Assim, da mesma forma que é papel do Poder Legislativo criar leis em consonância com o texto constitucional, é papel do julgador satisfazer os intentos constitucionais, buscando uma interpretação jurídica coerente, conforme o texto constitucional, ou declarando a inconstitucionalidade da norma quando isso não se faz possível. Ora, não é porque uma lei é omissa ou incompleta ou não suficientemente protetiva que o poder judiciário deve interpretá-la isoladamente e aplicá-la de forma cega e avalorativa. Textos de artigos de lei, assim como formulas matemáticas ou conhecimentos enciclopédicos, porque sucintos e sem maleabilidade, não são capazes de solucionar os complexos problemas da vida humana, que é tão rica e tão cheia de detalhes. Não é possível ao legislador regular tudo de forma harmoniosa e organizada. Deve fazê-lo da melhor forma possível, claro, mas é papel do juiz complementar a atuação do legislador no momento da aplicação das leis, que devem ser moldadas à realidade do caso concreto. Tanto isso é verdade que inclusive no ramo do direito processual, que é essencialmente rodeado de formalismos, é possível ao julgador adequar ritos, desde que garanta o direito ao contraditório e a igualdade das partes, para bem poder entregar aos interessados a tutela do direito material que se espera. Fala-se, nesse sentido, no princípio da adaptabilidade dos ritos processuais, princípio esse que, quando aplicado, não viola o devido processo legal, o qual deve ser entendido também na sua faceta substancial, de viabilizar às partes a consecução dos fins jurisdicionais de equidade e justiça. Assim, quando o juiz adapta um rito, desde que informe as regras do jogo às partes e desde que essas novas regras do jogo sejam consonantes com os escopos constitucionais, ele não está usurpando a competência do Poder Legiferante, mas concretizando a Constituição. Por tudo isso, entende-se que, reconhecida essa natureza penal da medida socioeducativa, dela decorre o reconhecimento, em prol do adolescente, das mesmas garantias penais que protegem o adulto. Ora, se o adulto acusado ou condenado tem direito a um conjunto de garantias processuais penais, e se a medida socioeducativa tem caráter punitivo idêntico ao da pena do adulto, o adolescente, quando acusado ou condenado, também deve ter direito a essas garantias processuais, que devem acompanhar o jovem durante toda a persecução penal.

            Concluo que a aplicabilidade de regras penais aos adolescentes é devida e não retira em nenhum momento a especificidade do direito da infância e juventude, que cumpre importante e insubstituível papel na garantia da proteção integral de crianças e adolescentes. 

            Na verdade, a importação de regras penais e processuais penais ao texto do Estatuto busca complementar os direitos do adolescente, que, enquanto sujeito de direitos, em nenhum momento poderá ser destinatário, no cenário de um Estado Democrático de Direito, de decisões contrárias à principiologia de um direito penal mínimo.

Módulo 4: Menoridade penal: uma visão garantista

4.1: Redução da Menoridade Penal: é a solução?

De tempos em tempos, a mídia, a sociedade em geral e, infelizmente, estudiosos jurídicos renomados, assustados com o fenômeno da criminalidade, seguem na contramão dos avanços garantísticos do Direito Penal para fazer ressurgir o caloroso debate acerca da redução da maioridade penal.

O assunto, portanto, permanece em voga: inúmeras são as Propostas de Emenda Constitucional que tramitam no Congresso Nacional com o objetivo de responsabilizar criminalmente os adolescentes em conflito com a lei (Pode-se citar, exemplificativamente, as seguintes Propostas de Emenda Constitucional: 171/93; 169/99; 179/03; 242/04; 26/07; 48/07; 85/07; 125/07; e 399/09. Outras Propostas de Emenda estão disponíveis no endereço eletrônico da Câmara dos Deputados (www.camara.gov.br), acessado em 18 out 09). Não bastasse isso, os meios de comunicação não medem esforços para incitar a população a temer e a marginalizar adolescentes, propagando o desejo de efetivação das mais duras formas de punição.

A despeito dessa realidade, certo é que a redução da maioridade penal não configura uma resposta eficaz para os problemas enfrentados pela sociedade. Por outro lado, há que se verificar, também, que a antecipação da idade de responsabilização penal não tem espaço no nosso ordenamento, haja vista a existência de proibições normativas inamovíveis.

Do direito fundamental à inimputabilidade penal

O artigo 227 da Constituição Federal atribui às crianças e aos adolescentes um tratamento jurídico privilegiado, norteado pela louvável doutrina da proteção integral, que reconhece a peculiar condição de pessoa em desenvolvimento desses indivíduos, admitindo-se, por conseguinte, a sua vulnerabilidade em relação aos adultos. Assim, o legislador optou por lhes conferir um tratamento desigual, na medida de sua desigualdade, objetivando o alcance de uma situação de igualdade substancial.

Com suporte no texto constitucional vigente, que, por sua vez, encontra amparo na sistemática de tratados e convenções internacionais de direitos humanos ratificados pelo Brasil, crianças e adolescentes adquiriram a qualidade de sujeitos de direitos destinatários de um tratamento jurídico mais benéfico, pautado nas idéias de proteção integral e de prioridade absoluta (Cf. LIBERATI, 2006, P. 27).

Nesse ponto, cumpre destacar que a Constituição Federal, regulando uma dessas situações que geram um tratamento mais favorável a crianças e adolescentes, assentou, em seu artigo 228, a inimputabilidade dos indivíduos com idade inferior a dezoito anos. Significa dizer que, antes de completar a referida idade, nenhum indivíduo poderá ser processado ou condenado criminalmente. A não completude do desenvolvimento psicológico de infantes e jovens obsta a sua responsabilização criminal.

Reconhece-se, assim, o direito fundamental de toda criança e de todo adolescente de não ser alvo do Direito Penal Comum, que age, por natureza, de forma agressiva e violenta para a consecução de seus fins. Noutras palavras, escudado pela mencionada regra constitucional, o indivíduo que não possua dezoito anos completos tem sua fragilidade natural reconhecida pelo ordenamento, que o protege da intervenção enérgica do Direito de Punir do Estado (também conhecido como Jus Puniendi).

Da redução da idade penal como medida inoportuna

Feitas essas considerações, é de se ver que muitas pessoas não concordam com o que dispõe o artigo 228 da Constituição Federal, por entenderem que indivíduos com idade inferior a de dezoito anos já sabem muito bem o que fazem e, por isso, deveriam responder criminalmente diante da prática de comportamentos ilícitos (na linguagem popular, esses indivíduos, porque criminosos, têm que pagar por suas condutas).

Os argumentos utilizados pelos defensores da redução da maioridade penal giram em torno, principalmente, de três afirmações: 

(1) diante da globalização, um indivíduo com menos de dezoito anos de idade já possuiria condições de compreender a ilicitude de seus atos e de eleger os seus comportamentos, razão pela qual deveria ser punido como o adulto; 

(2) a criminalidade juvenil teria aumentado em razão da impunidade supostamente gerada pela não aplicação das leis penais ao adolescente; e 

(3) a não responsabilização penal dos jovens poria em risco a segurança social.

Falaciosas são essas assertivas, que, seguramente, não encontram qualquer respaldo nos estudos científicos realizados a respeito do assunto.

No que tange à primeira argumentação, é certo que a facilitação do acesso à informação não representa constatação capaz de autorizar o rebaixamento da idade de responsabilização penal. Veja-se que o conhecimento de o que é certo e errado não basta para que o ser humano em fase de desenvolvimento atinja um nível esperado de autodeterminação e de amadurecimento. Quer dizer, saber se determinada atitude é aceita ou reprovada perante a sociedade não impede o jovem de transgredir, máxime porque essa transgressão é por vezes esperada pelos estudiosos das ciências psíquicas.

Isso porque já se comprovou cientificamente que antes dos dezoito anos de idade ainda não há completa formação das estruturas físico-químicas cerebrais responsáveis pela formação plena da razão. Consequentemente, um indivíduo que se encontre em uma etapa da vida de grande turbulência hormonal, embora conheça da tipicidade da conduta e saiba das consequências de sua prática, age por impulso, tendo dificuldades para se autodeterminar diante da proibição legal (cf. MACHADO, 2003, p. 321).

Com relação à segunda argumentação, consigna-se que as pessoas que afirmam descontentamento com relação à suposta situação de impunidade da juventude desconhecem totalmente o procedimento de responsabilização determinado pelo Estatuto da Criança e do Adolescente. Ora, o adolescente que comprovadamente pratica um ato infracional seguramente responde por ele. O jovem só não cumprirá pena porque a vulnerabilidade inerente à sua condição de pessoa ainda em desenvolvimento lhe assegura uma responsabilização mitigada, menos severa, revestida de aspectos pedagógicos mais evidentes. Mas responsabilização há, sem dúvida, na modalidade de medida socioeducativa.

No que toca à asserção relacionada ao suposto comprometimento da segurança social, cumpre transcrever as palavras de Paulo Afonso Garrido de Paula: “uma sociedade que se defende de crianças sepulta a ideia de proteção integral, aniquila a confiança na recuperação, destroi valor de civilidade e abate o princípio constitucional da dignidade humana” (PAULA in ILANUD, 2006, p. 40).

Dessa forma, não tem cabimento aderir ao posicionamento favorável à redução da maioridade penal, cujos alicerces são facilmente rebatidos pelas normas extraídas da principiologia da doutrina da proteção integral.

Feitas essas considerações, não restam dúvidas: é inoportuna a redução da idade de responsabilização penal.

Chegada essa conclusão, passa-se a analisar o tema sob outro aspecto. Com efeito, para estudar a questão da redução da maioridade em sua plenitude, não basta observar o fenômeno da responsabilização penal sob o aspecto biológico e/ou social. Imprescindível se torna, também, a análise do tema na seara jurídica.

Da redução da maioridade penal como medida inconstitucional

Observa-se que, independentemente das conclusões advindas dos inúmeros debates que questionam as vantagens ou desvantagens da redução da maioridade penal, essa discussão se torna absolutamente inócua diante da existência de óbices jurídicos intransponíveis, que proíbem a modificação do artigo 228 da Constituição Federal.

O artigo 60, §4º, IV, da Constituição, responsável por trazer ao nosso ordenamento as chamadas cláusulas pétreas, proíbe a elaboração de proposta de emenda constitucional tendente a abolir direitos ou garantias fundamentais. Significa dizer: direitos e garantias fundamentais não podem ser retirados do texto constitucional.

Veja-se que a previsão de direitos e garantias fundamentais não se esgota no rol do artigo 5º da Constituição. Logo, o referido artigo 228, ao fixar a idade de início de responsabilização penal aos dezoito anos, acoberta, indiscutivelmente, o direito fundamental do adolescente, agasalhado por cláusula pétrea, de não submissão aos ditames do severo Direito Penal (Cf. SHECARIA, 2008, p. 138/139).

Noutras palavras: o referido preceito constitucional garante a todo ser humano com idade inferior a dezoito anos o direito de não ser processado criminalmente, assegurando-se a vigência, em benefício desse indivíduo, de uma legislação especial, mais benéfica, que atenda às necessidades decorrentes da sua situação de fragilidade e de vulnerabilidade natural.

Não merece acolhida a argumentação de alguns doutrinadores, como do professor Pedro Lenza, no sentido de que, em havendo apenas a redução da idade penal (mantendo-se, pois, intacta a previsão de um marco de inimputabilidade no texto constitucional), restaria incólume o direito fundamental à inimputabilidade, núcleo duro do artigo 228 da Constituição Federal (Cf. LENZA, 2009, p. 872). Isso porque destinatários do referido artigo são todos os indivíduos com idade inferior a dezoito anos, devendo todos eles usufruir o direito fundamental à não imputação.

Em sendo assim, qualquer proposta de redução da maioridade penal, por envolver matéria resguardada por cláusula pétrea, deve ser declarada inconstitucional.

Ultrapassado esse ponto, identifica-se outro motivo proibitivo da redução da idade penal: o princípio da proibição do retrocesso, que impede a adoção de orientação jurídica que importe revogação de normas que concedam ou ampliem direitos fundamentais (Cf. BARROSO in RUBIO, 2004, p. 328). Os direitos galgados pela sociedade são lacrados por esse princípio, tornando-se intocáveis e indeléveis. Nem mesmo após uma ruptura constitucional esses direitos poderiam ser violados.

A redução da idade penal, nesses termos, independentemente da proteção das chamadas cláusulas pétreas, revela-se medida incompatível com a Constituição. Não se admite retrocesso na caminhada evolutiva de direitos fundamentais.

Indiscutível, portanto, a inconstitucionalidade da redução da maioridade penal.

Por fim, insta examinar uma última situação. Com a evolução do Estado de Direito Constitucional para o Transnacional, o operador do Direito, para verificar a validade das regras jurídicas, não deve se limitar a analisar normas nacionais. Também interferem na sistemática jurídica brasileira os Tratados e Convenções Internacionais, mormente quando versam sobre direitos humanos (Cf. GOMES, 2008, p. 46).

Dito isso, observa-se que, constatado um conflito entre uma regra da Constituição Federal e outra pertencente a um tratado internacional de direitos humanos, deve-se confrontar as regras antagônicas de cada um desses diplomas: aquela que melhor observar direitos individuais prevalece (princípio do pro homine), paralisando a eficácia da outra (Cf. GOMES, 2008, p. 89).

Diante disso, mesmo que nosso ordenamento admitisse a redução da idade penal, fatores supraconstitucionais impediriam a sua concretização. Haveria, no caso, choque entre a hipotética norma constitucional redutora da maioridade penal e o artigo 1º, primeira parte, da Convenção sobre os Direitos da Criança, que considera como criança (incluindo-se, aí, o adolescente) “todo ser humano com menos de dezoito anos de idade, a não ser que, em conformidade com a lei aplicável à criança, a maioridade seja alcançada antes”. Note-se que a ressalva feita ao final do artigo não teria aplicação, já que na data da ratificação dessa Convenção pelo Brasil a idade penal já havia sido fixada aos dezoito anos (e não pode haver retrocesso em direitos humanos). Em sendo assim, instaurado o conflito sugerido, prevaleceria a regra do Tratado (isto é, a maioridade penal aos dezoito anos), por ser o dispositivo que melhor salvaguarda direitos fundamentais. Inviável, por mais essa razão, a redução da maioridade penal.

CONCLUSÃO

Nota-se que a opinião pública, de uma forma geral, massacra nosso ordenamento jurídico, levantando infindáveis descontentamentos com relação a princípios e regras de todos os gêneros (inclusive humanísticos) e pleiteando, sempre, a redução dos direitos dos cidadãos – no caso, a redução da maioridade penal. De qualquer forma, ineficaz seria qualquer decisão legislativa tendente a reduzir a idade de imputação de responsabilidade penal, medida simplista e imediatista, que vai de encontro ao processo evolutivo dos direitos fundamentais.

Mas não é apenas a inconveniência da redução da maioridade penal que deve ser lembrada, pois nosso ordenamento jurídico, cercando-se dos instrumentos necessários à salvaguarda de direitos e garantias fundamentais, elevou o artigo 228 da Constituição Federal a um nível de máxima proteção jurídica, tornando-o inabalável diante das pressões populares ou das mudanças de direção do Poder. Nesse sentido, mais do que ineficaz, qualquer medida tendente a reduzir a maioridade penal revela-se absolutamente inválida, porquanto contrária aos ditames da Constituição Federal e dos Tratados Internacionais que concretizam a doutrina da proteção integral

Fonte: http://www.learncafe.com/cursos/edgar-morin-e-os-sete-saberes-necessarios-a-educacao-do-futuro

Um comentário:

  1. Esse curso é maravilhoso para mim que faço serviço social e vou trabalhar com criança e adolescente.

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